Comentários à promulgação presidencial da simplificação urbanística e ao veto ao diploma legal mais Habitação
António Coutinho Rebelo

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No passado dia 21 de Agosto de 2023, o Presidente da República vetou o Decreto governativo n.º 81/XV, que aprova medidas no âmbito da habitação. Importa conhecer os fundamentos desta decisão política e os argumentos que estão em causa para uma avaliação das suas implicações jurídicas.

“Tendo presente a emergência da crise habitacional, que afeta, sobretudo, jovens e famílias mais vulneráveis, e começa a afetar a classe média e a necessidade do aumento da oferta de imóveis para habitação, o Presidente da República promulgou o decreto da Assembleia da República autorizando o Governo a simplificar, significativamente, os procedimentos urbanísticos e de ordenamento do território. Porém, o Presidente da República não deixará de ter presente, na futura apreciação do Decreto-Lei autorizado, a necessidade de compatibilização entre a simplificação urbanística e outros valores a preservar, como é a segurança e qualidade das edificações, a responsabilização dos intervenientes no processo de construção e o importante papel da Administração Local em matéria de habitação e de ordenamento do território. O Presidente da República espera, ainda, que o Governo, se possível, aproveite o ensejo para ponderar a reunião num único diploma de toda a legislação dispersa (imensa e, em alguns casos, contraditória), eliminando contradições e normas obsoletas e melhorando a acessibilidade da legislação do setor, num passo fundamental para a desejável simplificação urbanística. Assim, prefigurando algo que aponte para um Código da Edificação”.

Comentário: a pedra de toque destas considerações é a de que a simplificação urbanística deve andar de par com a simplificação legislativa. Todos sabemos que o direito urbanístico e administrativo está deficientemente organizado, pleno de legislação extravagante, de difícil articulação, numa manta de retalhos cada vez mais complexa e impenetrável. O apelo do Presidente à criação de um Código da Edificação faz por isso todo o sentido, compilando legislação avulsa, integrando-a, num corpo único, coerente e transversal a estes domínios. Acresce que tal integração retira espaço à discricionariedade administrativa, num pequeno país com mais de trezentos municípios, muitas vezes com interpretações díspares dos mesmos normativos.

O Presidente da República devolveu à Assembleia da República, sem promulgação, o Decreto que aprova medidas no âmbito da habitação, procedendo a diversas alterações legislativas, com a seguinte mensagem:

“Palácio de Belém, 20 de agosto de 2023

A Sua Excelência O Presidente da Assembleia da República,

Dirijo-me a Vossa Excelência nos termos do n.º 1 do Artigo 136.º da Constituição, transmitindo a presente mensagem à Assembleia da República sobre o Decreto n.º 81/XV, que aprova medidas no âmbito da habitação, procedendo a diversas alterações legislativas, nos seguintes termos:

1. A emergência da crise habitacional, que afeta, especialmente, jovens e famílias mais vulneráveis, mas começa a atingir as classes médias, bem como a necessidade do aumento da oferta de imóveis para habitação, levaram o Governo, há seis meses, a anunciar um ambicioso Programa Mais Habitação, logo após recriar um Ministério para a Habitação.

Esse Programa integrava significativas medidas de simplificação administrativa, acolhidas noutro diploma da Assembleia da República, que acabei de promulgar.

Mas, sobretudo, aparecia, aos olhos dos Portugueses, centrado em cinco ideias muito fortes:

1.ª – O arrendamento forçado de casas de privados, devolutas, aumentando a oferta de habitação;

2.ª – A limitação ao alojamento local, permitindo, por essa via, também, aumento da oferta de arrendamento acessível;

3.ª – O reforço do papel do Estado na oferta de mais casas, por si e em colaboração com cooperativas, alargando o citado arrendamento acessível;

4.ª – A disponibilização de estímulos públicos aos privados para fazerem aumentar a pretendida oferta;

5.ª – Medidas transitórias, entre as quais as limitações à subida das rendas, durante o período do arranque e consolidação do Programa.

Tudo visando introduzir no mercado da habitação um choque rápido, que acorresse à emergência, fosse visível até 2026 – termo da legislatura –e permitisse travar a vertiginosa subida do custo da habitação, enquanto se esperava que os juros do crédito imobiliário, que oneram um milhão e duzentos mil contratos, cessassem a sua asfixiante subida.

2. A apresentação do Programa Mais Habitação acabou por polarizar o debate em torno de dois temas centrais – o arrendamento forçado e o alojamento local. Os efeitos foram imediatos:

1.º – Apagou outras propostas e medidas e tornou muito difícil um desejável acordo de regime sobre Habitação, fora e dentro da Assembleia da República.

2.º – Deu uma razão – justa ou injusta – para perplexidade e compasso de espera de algum investimento privado, sem o qual qualquer solução global é insuficiente.

3.º – Radicalizou posições no Parlamento, deixando a maioria absoluta quase isolada, atacada, de um lado, de estilo proclamatório, irrealista e, porventura, inconstitucional, por recair, em excesso, sobre a iniciativa privada, e, do outro, de insuficiência e timidez na intervenção do Estado.

Logo a 9 de março, me pronunciei sobre os riscos de discurso excessivamente otimista, de expetativas elevadas para o prazo, os meios e a máquina administrativa disponíveis e, portanto, de possível irrealismo nos resultados projetados.

3. Seis meses depois, o presente diploma, infelizmente, confirma esses riscos.

1.º – Salvo de forma limitada, e com fundos europeus, o Estado não vai assumir responsabilidade direta na construção de habitação.

2.º – O apoio dado a cooperativas ou o uso de edifícios públicos devolutos, ou prédios privados adquiridos ou contratados para arrendamento acessível, implicam uma burocracia lenta e o recurso a entidades assoberbadas com outras tarefas, como o Banco de Fomento, ou sem meios à altura do exigido, como o IHRU.

3.º – O arrendamento forçado fica tão limitado e moroso que aparece como emblema meramente simbólico, com custo político superior ao benefício social palpável.

4.º – A igual complexidade do regime de alojamento local torna duvidoso que permita alcançar com rapidez os efeitos pretendidos.

5.º – O presente diploma, apesar das correções no arrendamento forçado e no alojamento local, dificilmente permite recuperar alguma confiança perdida por parte do investimento privado, sendo certo que o investimento público e social, nele previsto, é contido e lento.

6.º – Não se vislumbram novas medidas, de efeito imediato, de resposta ao sufoco de muitas famílias em face do peso dos aumentos nos juros e, em inúmeras situações, nas rendas.

7.º – Acordo de regime não existe e, sem mudança de percurso, porventura, não existirá até 2026.

4. Em termos simples, não é fácil de ver de onde virá a prometida oferta de casa para habitação com eficácia e rapidez.

É um exemplo de como um mau arranque de resposta a uma carência que o tempo tornou dramática, crucial e muito urgente pode marcá-la negativamente.

Sem óbvia recuperação política a curto prazo, apesar do labor colocado na junção de várias leis numa e de certas ideias positivas, diluídas pelo essencial das soluções encontradas.

Isto é, tudo somado, nem no arrendamento forçado, nem no alojamento local, nem no envolvimento do Estado, nem no seu apoio às cooperativas, nem nos meios concretos e prazos de atuação, nem na total ausência de acordo de regime ou de mínimo consenso partidário, o presente diploma é suficientemente credível quanto à sua execução a curto prazo, e, por isso, mobilizador para o desafio a enfrentar por todos os seus imprescindíveis protagonistas – públicos, privados, sociais, e, sobretudo, portugueses em geral.

Sei, e todos sabemos, que a maioria absoluta parlamentar pode repetir, em escassas semanas, a aprovação acabada de votar.

Mas, como se compreenderá, não é isso que pode ou deve impedir a expressão de uma funda convicção e de um sereno juízo analítico negativos.

Nestes termos, devolvo, sem promulgação, o Decreto n.º 81/XV, que aprova medidas no âmbito da habitação, procedendo a diversas alterações legislativas.

O Presidente da República

Marcelo Rebelo de Sousa”

A argumentação do Presidente da República que sustenta este veto político ao diploma do Governo é extremamente pertinente, revelando uma sedimentação do sentir coletivo e uma previsão do insucesso das medidas propostas, procurando elencar as razões de fundo subjacentes a esta análise negativa.

Vamos comentar as suas ideias sobre as grandes questões que este diploma pretenderá resolver.

 1.ª – O arrendamento forçado de casas de privados, devolutas, aumentando a oferta de habitação

Quando ao longo de várias décadas, a criação de habitação pública por parte do Estado não existiu, e recorde-se, nos termos constitucionais, é ao Estado que incumbe assegurar aos cidadãos o efetivo exercício do direito à habitação, imputar aos privados o ónus de assegurarem habitação pela via coerciva do arrendamento social é no mínimo, um ato de suprema hipocrisia.  

Os privados investiram na criação e desenvolvimento de um parque habitacional, muitas vezes destinado ao arrendamento. Todavia, as interferências sucessivas no mercado do arrendamento, com alterações constantes do Regime do Arrendamento Urbano, depois convertido em Novo Regime do Arrendamento Urbano, bem como do Regime Jurídico das Obras em prédios arrendados, distorceram as regras de mercado, impondo restrições de tal ordem – por exemplo, congelamento dos aumentos de renda, condicionamento do direito de denúncia por parte do senhorio, complexidade e morosidade das ações de despejo –  que os proprietários perceberam que não compensava arrendar as suas propriedades.

É evidente que as habitações não foram feitas para ficarem vazias e qualquer proprietário gostaria de ter o seu imóvel rentabilizado e bem conservado, todavia tal resultado só ocorreu porque o Estado em lugar de criar mais habitação a custos controlados para o arrendamento acessível, preferiu atuar sobre os imóveis existentes, impondo regras aos proprietários adversas aos seus interesses.

Esta medida é confinada às grandes cidades, sobretudo Lisboa e Porto, pelo que nada o Governo faz para corrigir as assimetrias litoral-interior, neste eixo tão estruturante do desenvolvimento territorial.

É evidente que, por ser tão contranatura e violadora da essência do direito de propriedade, não tem condições para ter evidência estatística, nos curto e médio prazos.

O Presidente vaticina que o arrendamento forçado fica tão limitado e moroso, que não será mais do que um emblema político e ideológico, sem vantagens sociais palpáveis, conclusão à qual só podemos aderir.

2.ª – A limitação ao alojamento local, permitindo, por essa via, também, aumento da oferta de arrendamento acessível

Na esteira das dificuldades criadas aos senhorios pelo legislador no âmbito do arrendamento habitacional, alguns proprietários dispuseram-se a investir na reabilitação dos seus imóveis, desde que fosse possível obter novas rendas de mercado ou em alternativa, afetar tais bens a uma nova atividade emergente, o alojamento local, fenómeno impulsionado pelo turismo e notoriedade crescente do nosso país, nos mercados internacionais.

O AL cresceu muito rapidamente, com particular expressão em Lisboa, depois no Porto e posteriormente no Algarve, disseminando-se progressivamente pelo resto do país.

Em paralelo, para atrair capitais de investidores internacionais foi criado o regime Golden Visa, ou autorizações de residência para investimento, o qual durante alguns anos, foi quase exclusivamente direcionado para o imobiliário. Ambas as atividades rentáveis, geradoras de apports de capitais muito significativos ao nosso país.  

Mais cedo do que tarde se iniciou um processo político de diabolização destes investimentos, sob o argumento da gentrificação acelerada das grandes cidades, com a expulsão dos residentes locais e o aumento especulativo dos preços de venda e renda das habitações.

A lei do AL foi, entretanto várias vezes alterada para limitar o crescimento do fenómeno, em especial nas zonas urbanas do litoral e também os municípios criaram regulamentos para suspender ou limitar novas licenças. Não obstante tal realidade estar já bastante mitigada, esta medida vem introduzir restrições suplementares à atividade – num ataque ao princípio da iniciativa privada e liberdade de estabelecimento – prevendo inclusivamente a sua cessação a prazo.

Todavia não é expectável que os senhorios do AL, habituados a taxas de rendibilidade interessantes e propriedades bem cuidadas, se venham a interessar por uma alternativa, arrendamento acessível, cujas rendas tabeladas pelo Estado são significativamente inferiores às que percebem atualmente, em benefício de inquilinos tendencialmente perpétuos, introduzindo rigidez e potenciais incumprimentos.

Acresce que, tal como o Presidente assevera, a complexidade do regime de alojamento local e da passagem para o arrendamento acessível – mesmo com algum alívio fiscal – faz recear a ineficácia desta medida.

A oferta de arrendamento acessível só poderia aumentar se, para os senhorios, a passagem do modelo AL para arrendamento acessível, fosse neutral, não implicando sacrifício económico. Ora é evidente que as medidas fiscais previstas não terão esse resultado, dada a sua timidez. 

3.ª – O reforço do papel do Estado na oferta de mais casas, por si e em colaboração com cooperativas, alargando o citado arrendamento acessível

Refere o Presidente que, salvo de forma limitada, e com fundos europeus, o Estado não vai assumir responsabilidade direta na construção de habitação.

E tem razão.

Portugal não se enquadra no grupo dos países do Norte da Europa que têm uma tradição de afetarem níveis importantes de investimento público na criação de habitação social, acessível ou mista. Os Governos nacionais sempre se defrontaram com carências orçamentais, tendo optado por estimular o desenvolvimento da iniciativa privada de construção associando políticas financeiras de comercialização de crédito para aquisição de habitação própria permanente e incentivos fiscais (Planos Poupança Habitação, isenção de IMI nos primeiros cinco anos, etc.).

Excecionalmente promoveram alguns Planos Especiais de Realojamento, para acudir a situações críticas, mas que nunca consubstanciaram uma política nacional de habitação.

Alguma habitação será criada por força da canalização dos fundos do PRR, ainda assim sem impacto relevante.  

Por outro lado, também reconhece que o apoio a cooperativas ou o uso de edifícios públicos devolutos, ou prédios privados adquiridos ou contratados para arrendamento acessível, implicam uma burocracia lenta e o recurso a entidades assoberbadas com outras tarefas, como o Banco de Fomento, ou sem meios à altura do exigido, como o IHRU.

Ainda com poucos anos de existência, o Banco de Fomento não parece arrancar e o IHRU está enredado há largos anos na entropia do funcionalismo público.

Tais evidências levam-nos a supor que o Estado não contribuirá decisivamente para o alargamento da oferta, em escala e com massa crítica.

4.ª – A disponibilização de estímulos públicos aos privados para fazerem aumentar a pretendida oferta

Trata-se sobretudo de reduções ou isenções fiscais para aqueles que vendam os seus imóveis ao Estado ou que transfiram imóveis do AL para arrendamento habitacional de longo prazo.

Artigo 71º, nº 31 do Estatuto dos Benefícios Fiscais

Ficam isentos de tributação em IRS e IRC os ganhos provenientes da alienação onerosa, ao Estado, às Regiões Autónomas ou às autarquias locais, de imóveis para habitação (..).

Artigo 74.º-A

Transferência de imóveis de alojamento local para arrendamento

1 – Ficam isentos do IRS e IRC os rendimentos prediais decorrentes de contratos de arrendamento para habitação permanente, desde que verificadas, cumulativamente, as seguintes condições:

a) Resultem da transferência para arrendamento, para habitação

permanente, de imóveis afetos à exploração de estabelecimentos de

alojamento local;

b) O registo do estabelecimento de alojamento local tenha ocorrido e o

mesmo se encontrasse afeto a esse fim até 31 de dezembro de 2022;

c) A celebração do contrato de arrendamento e respetiva inscrição no Portal

das Finanças ocorra até 31 de dezembro de 2024.

2 – A isenção prevista no número anterior é aplicável aos rendimentos prediais obtidos até 31 de dezembro de 2029.

São isenções limitadas no tempo, cujo benefício é inexpressivo. Como diz o Presidente, o diploma “dificilmente permite recuperar alguma confiança perdida por parte do investimento privado” (..) “sem o qual qualquer solução global é insuficiente”.

5.ª – Medidas transitórias, entre as quais as limitações à subida das rendas, durante o período do arranque e consolidação do Programa

Embora esta medida pretenda travar o aumento das rendas dos imóveis habitacionais, tal como já sucedeu este ano, ao arrepio do previsto no NRAU, não vai ter só esse efeito. O efeito imediato é a retirada de mais imóveis deste mercado. Se o nível de rendas não compensa o senhorio, o mesmo irá atuar racionalmente, procurando noutros mercados outras alternativas de investimento. O travão ao aumento das rendas, num ambiente económico de inflação, significa que os senhorios vão ter uma redução efetiva das rendas que recebem e por consequência saem do mercado. Podem inclusivamente reconverter os imóveis para outros usos.

Ora, se é necessário chamar os privados para a solução global da crise habitacional, porquê criar regras que os agravam em vez de propiciar mecanismos de cooperação e estímulo à criação de mais e melhor oferta habitacional, num ciclo gracioso que a todos interesse? 

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